Pandemia

Acordo. Mais um dia igual ao outro, seria assim tão ruim acordar? Mas hoje tenho um plano! Hoje tenho uma lista de coisas a fazer, afinal, é o que devemos fazer, não é? Estar em movimento, ser produtivos, criar coisas, se exercitar, não parar.

Acordo. Não me sinto bem. Olho para o celular e vejo uma mensagem sua contando sobre os planos para o final de semana. Sinto que deveria responder, mas o que responder? Quais são os meus planos afinal? Não os tenho de fato. A minha lista de afazeres não configura planos, já não sou a pessoa cheia de planos e vida que você conheceu. Não sou ninguém.

Acordo e não quero levantar. Sinto que a minha existência foi reduzida a minha lista de afazeres, que eu tão assiduamente atualizo e na qual me apego para sentir qualquer coisa, sentir-se útil.

Gostaria de lhe contar a verdade: de que sinto que não sou a mesma e que não gosto dessa nova eu. Queria poder te dizer que eu me sinto metade de mim, sub-humana, fraca e tenho medo de que vocês e todos os outros o percebam. Tenho medo de que não gostem dessa pessoa sem planos que me tornei.

Acordo e sinto meu coração pesar. Que direito tenho eu de reclamar? Acordo sem fome, em uma cama quente, tenho roupas limpas. Tenho dinheiro guardado por alguns meses. Tenho comida na mesa por três refeições. Leio, me exercito, falo com amigos ao redor do mundo. Como posso ser tão mesquinha? Mas será possível ser mesquinha nessa meia vida?

Decido respondê-lo. Hoje isso é tudo que posso oferecer. Minha lista de afazeres, um dia por vez. E isso teria que ser suficiente, não poderia ser? Desde quando somos feitos de títulos? Desde quando eu sou as coisas que faço e possuo e não o amor e compaixão que carrego comigo?

Ainda assim sinto uma meia felicidade em todos os relacionamentos que mantenho, tenho medo de que descubram a farsa que sou, os farrapos que sobram de mim.

Hoje ajudar a minha irmã com a lição de casa terá que ser suficiente. Hoje assistir um filme depois de seguir uma live de fitness terá que ser o que me mantém animada. Hoje dormir e ouvindo um podcast em uma das línguas que falo vai ter que ser bom. Sem conversas com amigos, sem jantares, sem cervejas. Só silêncios.

Acordo e sinto uma solidão a qual há muito desconhecia. Que ironia que vir para casa me faria sentir assim que ironia que estar com a minha família de sangue me afastou da minha família de amigos.

Levanto. Café preto sem açucar, águar as plantas e viver a pandemia.

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